segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Corpo com mais gás - Ciência | Química

Formulações com rutênio que liberam ou captam óxido nítrico podem servir de base para futuros medicamentos
Pesquisa FAPESP -

Nova coletânia de osteologia e de miologia, de Jacques Gamelin, 1779

"Poderíamos nos apresentar como projetistas de compostos químicos produzidos sob medida que doam ou captam óxido nítrico." Ao imaginar essa possibilidade, Elia Tfouni não pretende abrir mão da modéstia, mas resumir os resultados de dez anos de trabalho com Douglas Franco - ambos são químicos e professores da Universidade de São Paulo (USP). Em conjunto com pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Tfouni, Franco e as respectivas equipes desenvolveram cerca de 50 compostos que nos estudos iniciais feitos em laboratório se mostraram capazes de absorver ou liberar óxido nítrico, gás incolor essencial ao organismo que aparece e desaparece a todo momento: sua meia-vida, quando metade do total de moléculas se desfaz, é de apenas cinco segundos.

Produzido, consumido e reposto a todo momento, o óxido nítrico facilita a circulação do sangue, o funcionamento do rim, a destruição de microorganismos nocivos, a ereção peniana e a contração do útero na hora do parto, além de servir como mensageiro químico entre os neurônios do cérebro. Poucas moléculas são tão versáteis e onipresentes, embora essa combinação de um átomo de nitrogênio com outro de oxigênio tenha sido vista durante décadas principalmente como um resíduo liberado pelo escapamento dos carros - até que três farmacologistas norte-americanos demonstraram sua importância para os seres vivos e ganharam o Prêmio Nobel de Medicina de 1998.

Às vezes pode ser bom reduzir a quantidade de óxido nítrico em circulação no organismo; outras vezes, o melhor é aumentar a oferta dessa molécula ligada à vida e à morte, ao prazer e à dor. No choque séptico, como é chamada a brutal queda da pressão arterial que decorre de uma infecção bacteriana, há uma produção excessiva de óxido nítrico - associada também à esquizofrenia, ao mal de Alzheimer, ao diabetes e à asma. Nesses casos sua abundância não é desejada e seriam bem-vindos medicamentos que reduzissem sua concentração no organismo. Outras vezes o que se quer é o efeito contrário e manter a maior quantidade possível de óxido nítrico em circulação, valendo-se de sua propriedade de promover a dilatação das veias e artérias: medicamentos como o Viagra baseiam-se justamente nesse efeito, por meio do qual o sangue circula mais generosamente pelo pênis. Na situação inversa, a escassez de óxido nítrico faz os vasos sangüíneos se contraírem e torna mais iminente a possibilidade de um infarto.

Franco e Tfouni gostariam imensamente de dizer que já têm em mãos algo novo para evitar o infarto ou mesmo um Viagra nacional. Mas não. Seus estudos são puramente químicos e apenas começaram os testes em animais, primeira etapa de uma longa jornada rumo a aplicações seguras em seres humanos. O composto que se encontra em estágio mais avançado de pesquisa é chamado coloquialmente de PRuNO, abreviação de um nome quase impronunciável, o hexafluorofosfato de trans-nitrosiltetramintrietilfosfitorrutênio(II). Em laboratório, o PRuNO mostrou-se eficaz para reduzir a pressão arterial de ratos hipertensos, de acordo com um estudo feito em conjunto com Marta Krieger, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e publicado em 2002 na revista Nitric Oxide: Biology and Chemistry.

Alessander Acácio Ferro, ex-aluno de doutorado de Tfouni, desenvolveu outro composto aparentemente promissor. Chama-se hexafluorofosfato de trans-nitrosylcloro (1,4,8,11-tetraazaciclotetradecano) rutênio (II) - para simplificar, cyclam - e exibiu uma ação 20 vezes mais lenta quando comparado com o nitroprussiato de sódio, um composto usado para tratar ataques cardíacos, já que repõe rapidamente o óxido nítrico. Ainda que o trabalho tenha apenas começado, segundo Franco esse resultado sugere que o cyclam poderia ser utilizado para manter a pressão arterial estável, mais do que para resolver situações de emergência, como fazem o nitroprussiato ou a nitroglicerina, que também é um liberador de óxido nítrico, além de ser um explosivo poderoso.

Em estágio menos avançado estão os estudos de Jean Jerley Nogueira da Silva, um dos alunos de Franco, sobre o uso potencial desses compostos no combate a infecções. Em colaboração com João Santana, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, Silva verificou que o óxido nítrico bloqueia a reprodução do protozoário Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, contra a qual há décadas não surgem medicamentos novos. Silva selecionou três compostos com alto poder de destruição: em uma hora, cada um dos três matou de 60% a 92% dos parasitas mantidos em meio de cultura.

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